Júlio da Silveira Moreira*
A Lei de Anistia foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal nos dias 28 e 29 de abril passados. Tratou-se da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153, ajuizada pelo Conselho Federal da OAB destinada a estabelecer a correta interpretação constitucional da Lei n. 6.683/79 (Lei de Anistia), de modo a declarar que “a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964/1985)”. Por 7 votos a 2, os ministros decidiram arquivar a referida ação, entendendo que a anistia “ampla, geral e irrestrita” significa que tanto agentes da repressão como opositores do regime fascista devem ser igualmente beneficiados, e que isso foi um avanço no processo democrático.
Um circo para a impunidade
A história não foi bem como os ministros sustentam. Cabe analisar, primeiro, o que significava anistia “ampla, geral e irrestrita”, e depois, o que significou o perdão aos agentes da repressão por eles próprios, garantindo que seus crimes contra o povo brasileiro nunca fossem julgados.
No momento em que a gerência militar do Estado dava seus sinais de esgotamento e decadência, foi articulada pelos governos Geisel e Figueiredo uma transição “lenta, pacífica e gradual”, sob orientações do presidente dos EUA Jimmy Carter. Para o imperialismo estadunidense, se tratava de uma nova política de dominação, trocando subitamente a política de patrocínio das ditaduras militares pela defesa das “eleições livres” e monitoradas por instituições e governos estrangeiros – leia-se farsa eleitoral.
Assim, estava se garantindo que a gerência militar saísse de cena sem que se desse espaço de poder aos movimentos populares, para que o Estado mantivesse inalterada sua estrutura de classes e seu capitalismo burocrático, sob a mesmíssima situação de dependência na ordem imperialista. Mais um pacto de elites na história do Brasil para que tudo mudasse para que continuasse como estava, sem alterar estruturalmente o Estado das velhas oligarquias.
Os movimentos populares reivindicavam “anistia ampla, geral e irrestrita”. Ampla e geral porque deveria atingir todos os perseguidos pelo regime político, fossem eles presos no próprio país, exilados, servidores públicos, intelectuais, sindicalistas, etc. Irrestrita porque deveria assegurar um verdadeiro fim às perseguições políticas, uma garantia de que não haveria mais atos de terrorismo de Estado. Jamais os movimentos populares estariam exigindo que seus algozes fossem também anistiados.
Quando a discussão da anistia alcançou os corredores do poder, os grupos de direita e de “esquerda”, no espírito da “transição pacífica”, já articulavam a impunidade dos agentes da repressão como uma chantagem, uma troca de favores, como condição para que a anistia aos perseguidos políticos fosse aprovada.
No jornal A Nova Democracia n. 11, julho de 2003, Fausto Arruda mostrou que
no período de transição do gerenciamento militar, a esquerda brasileira, em sua quase totalidade, já havia capitulado completamente perante a reação — a anistia geral e irrestrita representou exatamente um novo pacto político-social, o da concertação, da colaboração de classes.
A Lei n. 6.683 foi aprovada em 28/08/1979, pelo Congresso Nacional da gerência militar, um parlamento sem qualquer autonomia, formado pelos senadores biônicos, escolhidos em Colégio Eleitoral e sancionados pelos próprios militares golpistas, tudo respaldado pela Emenda Constitucional n. 8 de 1977, uma emenda fascista a uma Constituição fascista. Portanto, a Lei de Anistia significou uma descarada auto-anistia, um perdão concedido pelos torturadores a si próprios.
João Batista Herkenhoff (“A cidadania no Brasil contemporâneo”) mostra que a anistia
não foi tão ampla, geral e irrestrita quanto se desejou. E anistou não apenas os perseguidos políticos, mas também os que praticaram crimes em nome do regime. Chegou mesmo a anistiar torturadores, o que é bem chocante. A essa anistia de perseguidos e perseguidores chamou-se de “anistia recíproca”.
Falar, hoje, que a impunidade aos agentes da repressão deve ser mantida em nome da anistia “ampla, geral e irrestrita” é um confuso jogo de palavras intencionalmente praticado. O que o STF está sustentando é o que se chamava, ainda na época da aprovação da Lei de Anistia, de anistia recíproca.
A jurisprudência internacional
É óbvio que a interpretação da Lei de Anistia seja revista, até porque a Constituição de 1988 é posterior a ela, e ali se assegura a responsabilidade do Estado por violação a direitos fundamentais, se diz que a tortura é crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (art. 5º, XLII), e declara a inafastabilidade do Poder Judiciário. Nesse caso, como em inúmeros outros, se diz tecnicamente que a Constituição “não recepcionou” a referida lei. Ainda mais que a lei foi uma criação do próprio governo dos torturadores, caracterizando-se o que se chama em Direito de auto-anistia.
Assim também a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José) proscreve a tortura e assegura as garantias judiciais, motivo pelo qual a Corte Interamericana ordenou o fim das leis de anistia em países do continente, em atenção ao direito à memória e à verdade, especialmente nos casos Barrios Altos (Peru, 2001), Almonacid (Chile, 2006), e La Cantuta (Peru, 2006). Essas leis “pretendem subtrair da Justiça os responsáveis por crimes contra a humanidade”, “não são verdadeiras leis, não passam de uma aberração jurídica”, afirmou o juiz Antonio Augusto Cançado Trindade (Correio Braziliense, 18/12/2008), então membro daquela Corte e hoje da Corte Internacional de Justiça em Haia, Holanda. Em adição, o membro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, José Carlos Moreira da Silva Filho, afirma que “é imoral igualar o terrorismo do Estado brasileiro à luta que se empreendeu contra ele” (www.ihu.unisinos.br, 12/01/2010).
Reconhecidos juristas e personalidades brasileiras e internacionais iniciaram um Manifesto contra a anistia aos torturadores, e o Comitê contra a Anistia aos Torturadores havia encaminhado um Apelo ao STF, relativo à ADPF 153, que já conta com mais de 18 mil assinaturas. O apelo afirma que o Brasil “é o único país da América Latina que não julgou criminalmente os carrascos da ditadura militar”, e que a manutenção de leis como essa favorece e institucionaliza “a continuidade da violência atual dos agentes do Estado”.
Portanto, a decisão do STF afronta a jurisprudência internacional. O Estado brasileiro já havia descumprido decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para investigar e punir responsáveis por torturas e outros crimes durante o regime militar. Está sendo julgado na Corte Interamericana de Direitos Humanos o caso Guerrilha do Araguaia (Caso n. 11.552), que aborda o desaparecimento forçado dos combatentes da guerrilha e a impunidade assegurada pela Lei de Anistia. A vergonhosa decisão do STF foi levada à Corte: a audiência do caso ocorreu nos dias 20 e 21 de maio de 2010, e a sentença deve sair em dezembro. Isso mostra que a mobilização popular deve continuar.
É digno de nota que os últimos governos, especialmente o governo Lula, têm se empenhado em não revelar ao povo brasileiro os arquivos da ditadura militar, em amenizar os crimes cometidos pelos torturadores e em sustentar sua impunidade com a manutenção da Lei de Anistia. É bom lembrar que as “birras” sobre o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) não partiram de setores isolados das Forças Armadas, mas de sua cúpula, o Ministro da Defesa Nelson Jobim e os comandantes militares. E ainda que oportunistas travestidos de “defensores dos direitos humanos” insistem que a Lei de Anistia é uma “página virada na História”.
Conclusão
Ao arquivar a ADPF 153 e manter a impunidade aos torturadores, o STF reafirma sua condição subserviente de um tribunal “que suportou sem protestar todas as violações à liberdade perpetradas pelos militares” (Lenio Streck, em Questões agrárias. Julgados comentados e pareceres, p. 49), mantendo o país com a condição mais atrasada na América Latina em termos de direitos humanos, assentando definitivamente a violação ao direito internacional e afrontando a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mais do que isso, institucionaliza a tortura no ordenamento jurídico brasileiro.
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* Júlio da Silveira Moreira é Vice-presidente da Associação Internacional dos Advogados do Povo e professor de Direito Internacional.