Gabriel Pimenta –

Gabriel Pimenta – herói do povo brasileiro!

“Ao te matarem te multiplicaram e agora seremos milhões!”

Abrapo e Rafael Sales Pimenta1

Terceiro entre os sete filhos homens do Seu Geraldo Pimenta e D. Glória, Gabriel nasceu no dia 20 de novembro de 1955, em Juiz de Fora, Zona da Mata de Minas Gerais. Cresceu em um ambiente extremamente saudável e instigante, vendo seus pais trabalharem duro para dar conta da criação da grande prole, enquanto ambos se desdobravam para dividir a mesma atenção e carinho com todos os filhos, e com quantos mais necessitassem de seu apoio. Amigo de todos os irmãos, Gabriel representava um elo de unidade na sua família, posição conquistada não por uma suposta atitude conciliadora mas, ao contrário, pelo seu gosto particular pelo debate aberto e franco. Apoiado em uma base firme, e a partir dos bons exemplos de casa, o jovem Gabriel seguiu em frente, buscando o seu caminho.

Depois do golpe militar de 1964, Juiz de Fora se agitava dia e noite, respirando o clima quente da luta contra

o regime militar fascista. As organizações democráticas denunciavam as torturas e assassinatos bárbaros, ao mesmo tempo que trabalhavam incessantemente para apoiar todos os que lutavam e esconder os perseguidos políticos. Devido a importância e o peso da universidade federal local para toda a região, Juiz de Fora era considerada uma “cidade-universitária”, onde o movimento estudantil tinha um impacto direto na vida da maioria da população. Assim, a resistência e luta dos estudantes repercutia fortemente na cidade, enquanto as arbitrariedades dos militares golpistas e da polícia política eram repudiadas. Os partidos e organizações revolucionárias se fortaleciam com a participação e integração dos estudantes universitários em suas fileiras. Juiz de Fora teve também, em décadas anteriores, um operariado politizado e organizado e, por isso mesmo, uma base importante do Partido Comunista.

Neste cenário de ataques e resistência, a família Sales Pimenta não se abatia. Embora o monopólio de imprensa, em geral, escondesse o massacre de centenas de combatentes, ao mesmo tempo que abafavam também os vários casos de corrupção deslavada e desvios de recursos ocorridos durante o regime militar2, todos da família se mostravam dispostos a fazer algo para combater o regime. Eles gostavam de ler juntos, em casa, do início ao fim, os jornais alternativos e clandestinos que circulavam. Eram todos leitores ávidos, que chegavam mesmo a dividir entre eles as páginas dos jornais, para lerem as notícias, todos ao mesmo tempo. Eram informações e análises necessárias para ajudar no trabalho político.

A mobilização crescia em todo o país e, claro, na cidade e região. A cada dia mais pessoas se uniam para a ação política direta e também para a resistência cultural e popular. Existiam vários grupos musicais locais de expressão e muitos artistas nacionais ali se apresentavam, tanto nos teatros da cidade como no “Som Aberto”, que era uma atividade cultural gratuita e semanal, organizada pelo DCE-Diretório Central dos Estudantes na UFJF-Universidade Federal de Juiz de Fora. Todos os sábados, pela manhã, centenas de jovens ativistas, democráticos e revolucionários, se reuniam para assistir aos shows e, principalmente, conversar, trocar informações, agitar suas reivindicações estudantis e preparar as campanhas e lutas. Era um ponto marcado entre aqueles que persistiam na luta contra o regime militar fascista.

As discussões sobres política e cultura eram constantes na casa da Rua Oscar Vidal e de lá surgiram campanhas políticas, movimentos culturais, musicais e até chapas de Diretórios Acadêmicos e do DCE. Lá foram realizadas também reuniões da UEE-União Nacional dos Estudantes e de diretores da UNE-União Nacional de Estudantes, naquele período bastante intenso. Muitos fatos são mantidos vivos na memória dos irmãos.

Um deles merece registro. A reunião para a organização do IIIº ENE (Encontro Nacional de Estudantes), que ocorreria em Belo Horizonte, acabou sendo realizada justamente em Juiz de Fora. Mas, por causa da vigilância constante, montada pelo aparelho de repressão política, à sede do DCE da UFJF, os dirigentes estudantis decidiram sair do local em pequenos grupos, para assim distraírem a polícia. Aqueles pequenos grupos de estudantes se encaminharam, imediatamente, para a casa da família Pimenta, onde a reunião pode então se desenvolver, por 2 dias. A mãe, D. Glória, em demonstração do seu apoio firme e decisivo, reuniu mantimentos com vizinhos e amigos solidários, para dar conta de alimentar tanta gente, e ela fez isso sem que nenhum movimento fosse percebido. O IIIº ENE teve a tarefa de organizar o Congresso de Reconstrução da UNE, que ocorreu em Salvador, em 1979, quando um dos irmãos, José Pimenta, então presidente do DCE/UFJF, foi eleito, pela primeira vez, diretor da UNE, sendo reeleito depois para mais um mandato.

Dentro deste cenário de efervescência política, a casa dos Pimenta era um centro político, já que os pais apoiavam as iniciativas dos filhos e também atuavam diretamente nos movimentos de solidariedade e de luta. Gabriel, por sua vez, participava ativamente de toda a agitação política da época, sempre muito identificado com aqueles que sofriam diretamente a exploração e opressão do regime fascista. Ele era um jovem que usava a cabeça para pensar, como diziam, sempre buscando ver à frente dos acontecimentos. Alegre, de incansável energia, disposição de trabalho e, desde cedo, de ideias revolucionárias, ele era um jovem culto, inteligente, estudioso que adorava ler. E mais, falava diversos idiomas e gostava de teatro, tendo atuado em diversas peças do “Grupo Divulgação”, de Juiz de Fora.

Cursou Direito na UFJF, formando-se em fevereiro de 1978, aos 24 anos de idade. Participou, como outros da família, das mais importantes lutas estudantis e campanhas políticas do período, sempre ao lado de seu irmão José Pimenta, a quem estimulou a entrar na luta estudantil e política. Estudante brilhante, Gabriel prestou concurso para um cargo no Banco do Brasil, ainda em 1978 e foi aprovado em 3º lugar, em todo o país. Foi então selecionado para a agência sede do banco, em Brasília, Distrito Federal, onde tomou posse em dezembro daquele ano. Ele comentou com a família que quando assumiu o trabalho na Diretoria-Geral do banco era o único jovem no meio de pessoas bem mais velhas, num ambiente burocrático e elitista, que logo o incomodou. Deputados, senadores e amigos do regime apareciam lá todos os dias à cata de dinheiro para as obras eleitoreiras nos seus estados de origem. Em poucas semanas Gabriel já se impacientava com aquilo que via e já não aceitava tranquilamente o trabalho burocrático que ele pensava seria forçado a desenvolver nos próximos anos, caso continuasse como funcionário do banco.

A incompatibilidade de projetos de vida entre ele e seus colegas de banco ficou logo visível. Depois de poucos meses ele já estava buscando outro trabalho. Nesta fase, perguntou a alguns irmãos se deveria ir para a Cacex-Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil, já que falava línguas estrangeiras, ou ser advogado da CPT-Comissão Pastoral da Terra, para trabalhar em Conceição do Araguaia, pois tinha sido sondado e recebido um convite. Mas, naquela altura, quando questionou seus irmãos, Gabriel já tinha se decidido a ser um defensor dos camponeses pobres, sem-terra, de Conceição do Araguaia.

E assim ele tomou, naquele exato momento, a sua verdadeira opção de vida escolhendo o lado do povo pobre. Gabriel escolheu, como sendo o seu, o caminho de luta dos milhões de brasileiros explorados e atirados na miséria e no sofrimento. Foi uma decisão consciente, de entrega total à libertação do povo e compromisso de trabalhar em tudo pelos interesses do povo, com espírito de completa dedicação aos demais sem a menor preocupação por si mesmo.

Demitiu-se do banco em outubro de 1979 mas, como comentou depois, não saiu de sua sala sem antes divertir-se um pouco com os olhares surpresos dos colegas que não acreditavam no que presenciavam, ou seja, na sua demissão voluntária. Isso porque o posto de Gabriel no banco, era, para eles, a posição profissional que tinham almejado para suas vidas. Aliviado, feliz e muito animado, Gabriel seguiu em frente e foi então contratado para advogar para a CPT, em Conceição do Araguaia, ainda no ano de 1979, quer dizer, menos de um ano após mudar-se para Brasília.

Conceição do Araguaia tinha peso na esfera política. Naquele momento de “abertura política”, a campanha pelo fim do regime militar fascista mobilizava todos os democratas em todo o país e Conceição era uma das cidades mais importantes do interior, para o movimento social desenvolvido pela igreja católica, na sua ação junto ao campesinato. Se Brasília era o centro e ponto culminante da administração pública federal e da política nacional, Conceição do Araguaia era a porta de entrada para um outro mundo, como dizia Gabriel. Para ele existiam dois brasis: “um de Brasília para baixo e outro de Brasília para cima”.

Na região norte do país estava parte de um outro Brasil, que não era mostrado nos noticiários e que segue camuflado ainda hoje. Ali estava, e ainda está, uma pequena amostra do que é o Brasil real. Onde dos 420,5 milhões de hectares de terras tituladas no Brasil, 50% (210 milhões de hectares) pertencem a apenas 2% das propriedades latifundiárias (acima de mil hectares cada). Ou seja, do total de 5,5 milhões de propriedades, apenas 110 mil concentram 210 milhões de hectares nas mãos de somente 23 mil proprietários (latifundiários, bancos e corporações nacionais e transnacionais). No outro extremo estão os pequenos proprietários (de 0 a 100 hectares) representando 90% do total (4,95 milhões de famílias) com somente 20% das terras (84,1 milhões de hectares). Em média, são 24 hectares por família. Os restantes 30% das terras (), pertencem a 8% (440 mil propriedades) de médios proprietários. Além do que existem cerca de 5 milhões de famílias sem-terra. É a segunda maior concentração de terras do mundo, ficando atrás somente do Paraguai.3

Portanto, a realidade de imensa desigualdade social no país se explica justamente pela manutenção deste modelo que se apoia e se reproduz sobre uma base arcaica, que se arrasta, inalterada, ao longo de séculos. Consequência disso é o conflito permanente no campo, que vitima milhares de camponeses e ativistas a cada década. De 1985 a 2007 ocorreram 1.117 conflitos com 1.493 mortes de camponeses.4 Assim como centenas de mortes durante o período do regime militar estão também relacionadas a diversos conflitos pela posse da terra.5

No sul do Pará, na região do rio Araguaia se desenvolveu a Guerrilha do Araguaia – a luta que mais alto ergueu a bandeira da guerra popular no país, até hoje. Gabriel conhecia a história e sabia dos desafios que estavam colocados para ele quando aceitou a proposta de trabalho em Conceição. Na Guerrilha do Araguaia, ao longo de mais de três anos de combates, dezenas de abnegados comunistas verteram seu generoso sangue para abrir caminho à revolução brasileira. A audácia e heroísmo dos combatentes comunistas marcaram para sempre a vida do povo pobre do sul do Pará, de Tocantins e Maranhão. Passados muitos anos, os camponeses não esquecem os guerrilheiros, que com seu devotado trabalho lançaram raízes profundas de rebelião e revolução na região.

Este foi um grande exemplo de luta e de decisão e diversos outros movimentos organizados, em defesa da terra e dos direitos do povo pobre, ocorreram em toda a região depois da Guerrilha do Araguaia, ainda que com diferentes linhas e objetivos. E assim Gabriel não se intimidou diante de desafios e logo se dispôs a encarar, de frente, a tarefa. Ele sempre teve a característica de um organizador político e naquela tarefa casou conhecimento e prática, para avançar. Mais do que nunca ele estudava, discutia com muitos companheiros e praticava o que correspondia ao seu conhecimento teórico, prático e à sua consciência naquele momento. Uma coisa é certa: ele sempre foi um revolucionário, que acabou por se transformar, no decorrer do processo, em um militante comunista, com firme compromisso de classe e destacada capacidade de organização e ação.

Chegando em Conceição do Araguaia, em outubro de 1979, ele logo começou a desenvolver o trabalho que sabia fazer muito bem. E com o passar do tempo, a sua consciência e seu compromisso com o trabalho no campo acabou por colocá-lo em lado distinto daqueles com os quais conviveu no período inicial de trabalho na CPT. Para Gabriel, o movimento no campo devia ser de apoio claro aos direitos dos camponeses à terra, para quem nela trabalha e, ao mesmo tempo, contra os latifundiários grileiros, a polícia a mando deles, contra o judiciário corrupto e os governos reacionários. Para ele não cabia apenas o trabalho de cunho religioso, de catequização e de consequente submissão.

Por isso, Gabriel fez contatos e iniciou um trabalho junto a outros grupos e organizações, de dentro e de fora da igreja católica na região. Ele passou a entender melhor a questão camponesa. E diante da contradição principal, e tão profunda na região, entre camponeses pobres e latifundiários, percebeu que era necessário fazer a luta reivindicativa dos camponeses pela terra unindo esforços entre os iguais, para enfrentar os inimigos. Assim, ele foi montando uma rede de contatos nas comunidades e nos patrimônios, como são chamados, na região, os pequenos povoados. E foram surgindo grupos de trabalho, enquanto várias atividades foram sendo promovidas, além da constante discussão política. Associações de todos os tipos foram criadas e começaram a se mobilizar na região. Gabriel sempre comentava com a família, com admiração e respeito, sobre pessoas que compareciam às reuniões marcadas, depois de se deslocarem, a pé, por mais de 50 km. Tudo isso aumentava a sua convicção de que estava no caminho certo.

Os camponeses queriam conversar sobre seus problemas fundiários, trabalhistas e familiares. Eles queriam compartilhar suas dores e buscar uma palavra de esperança e uma proposta para superar tanta exploração e opressão, entendendo que a luta devia ser em conjunto com outros que viviam a mesma realidade. O trabalho foi se desenvolvendo, porém foram surgindo mais e mais dificuldades de entendimento entre dois mundos, ou melhor, entre duas concepções de mundo. Enquanto a igreja católica e a evangélica buscavam evangelizar o novo cristão, sem o preparar para a luta em defesa da terra e contra os grileiros, Gabriel queria politizar e organizar o povo na defesa de seus direitos, mesmo porque a violência dos latifundiários contra os camponeses aumentava muito a cada dia. Foi para defender os direitos legítimos dos camponeses, inclusive com desobediência civil, como destacou um dos irmãos, é que ele aceitou o desafio de ir trabalhar em Conceição do Araguaia.

Em todos os lugares as reuniões organizadas por Gabriel começaram a ser notadas, assim como seu comprometimento com a causa dos camponeses sem-terra e a sua empatia para com eles. Em todo canto o povo reivindicava seu retorno, enquanto a igreja observava o movimento, sem interferir. Entretanto, esse distanciamento da igreja se deu por pouco tempo. Os acontecimentos que se seguiram naquela região comprovaram o que a história tinha mostrado antes, ou seja, que a percepção da igreja diante de casos de acirrados conflitos de terra não a leva a uma posição passiva, ou neutra. Ao fim e ao cabo, a igreja enquanto instituição, acaba sempre por se alinhar às forças dominantes, conformando uma forte barreira à justa luta do povo. Isso é verdade, embora muitos religiosos, por decisão individual, entraram na luta e, inclusive, muitos deles também deram suas vidas na defesa dos direitos dos camponeses e do povo pobre. O fato é que a  história se repetiu no estado do Pará.

Impulsionar a politização e organização para a defesa do povo e do camponês, contra séculos de exploração do latifúndio e do velho Estado brasileiro, burguês-latifundiário, policial, é um trabalho muito importante para todos os que atuam nessas trincheiras de luta. No nosso país, não existe respeito à cultura nacional, ao trabalho do povo, à vida e tradição dos indígenas, dos quilombolas descendentes dos escravos pretos, do povo preto em geral, das mulheres, dos jovens e dos idosos. Na verdade nunca existiu porque esta é uma sociedade de classes, na qual prevaleceu sempre os interesses das classes dominantes. E esta era a realidade do Brasil, ‘acima de Brasília’, com que Gabriel se deparou, quando foi atuar na região de Conceição do Araguaia e depois em Marabá.

Não foi uma surpresa quando o trabalho político e mesmo a atividade jurídica que Gabriel desenvolvia passou a conflitar com a proposta dos religiosos (entre eles, os amigos que o convidaram) de fazer a catequese dos posseiros, ou de simplesmente denunciar a violência que se abatia sobre os camponeses pobres e, de maneira assistencialista, acudir os necessitados. Gabriel e outros companheiros de luta queriam organizar a defesa dos posseiros, mas seus amigos da igreja queriam catequizá-los, principalmente. O ‘estranhamento’ entre Gabriel e a igreja deixou o campo subjetivo do incômodo e da perplexidade para ambas as partes quando a igreja passou a agir para o desmantelamento intencional do trabalho desenvolvido por Gabriel.

Diversas cartas de Gabriel aos familiares dão conta das dificuldades que ele tinha para realizar o trabalho para o qual havia sido contratado. Ele compartilhava sempre com a família e companheiros o que estava acontecendo e queria que os mais próximos fossem até lá, por dois motivos: primeiro, para conhecer a vida difícil do povo e, segundo, para que também pudessem sentir a mesma alegria que ele sentia por viver junto àquele povo. Uma alegria mais concreta e mais palpável do que a vida baseada no individualismo e consumismo que se vivia, como sendo a ‘natural’, no outro Brasil. Gabriel queria que vissem de perto as diferenças entre as concepções proletária e burguesa do mundo. Ele estava em Conceição não fazendo aquele trabalho por compromisso profissional, trabalhando pelo privado como advogado, mas por decisão de servir à causa do povo, como a mais importante razão de viver. Além disso, a força do rio Araguaia e a grandiosidade das matas ao redor o alegravam ainda mais.

E assim foi que, novamente, depois de poucos meses estava ele em situação complicada para implementar uma atividade política mais consequente. Ele sabia, e escreveu muitas vezes a respeito, que iria se chocar com a igreja a qualquer momento. Mas a ideia de advogar para os camponeses contra o Estado, que protege latifundiários grileiros, e seu compromisso de servir ao povo eram razões suficientes para Gabriel prosseguir.

Através de suas cartas e telefonemas, o pessoal de casa, companheiros e alguns amigos ficaram sabendo que Gabriel vinha recebendo outras propostas de trabalho, para diversas regiões do país. Sua nova decisão foi tomada com a mesma certeza e tranquilidade de antes, principalmente porque ele já era então parte do povo pobre do norte do país. Menos de um ano depois de chegar em Conceição do Araguaia ele deixava a cidade rumo a outro local, onde pudesse seguir na luta.

Gabriel foi convidado a visitar Marabá, – onde a CPT também tinha um trabalho nos moldes de Conceição do Araguaia – e encontrar-se com o bispo local, Dom Alano Pena, para medirem interesses de parte a parte na busca por um consenso que o levasse a se transferir. O bispo era amigo da família e vira Gabriel crescer. Quando ia a Juiz de Fora, Dom Alano visitava os pais de Gabriel, em casa, visto que ambos participavam, naquele período, do MFC/Movimento Familiar Cristão. Os Dominicanos frequentavam diariamente a casa dos Pimenta. Daí veio o convite para Gabriel trabalhar em Marabá. Seria um trabalho semelhante ao anterior, porém em uma nova região.

Gabriel foi para Marabá e saiu logo a viajar por distâncias de mais de 500 km para visitar patrimônios de interesse e para conhecer pessoas. Sempre atento e vigilante aos interesses dos camponeses ele chegou a testemunhar ameaças, atos de bandidagem, de pistolagem e violência policial, que sempre ocorriam em toda a região de Marabá e viu também muitas mortes de camponeses. Mas, o principal, fez muitos amigos, entre eles a companheira Adelina Braglia, que logo se impressionou com sua capacidade de entrega para manter alto o ânimo dos camponeses nos momentos mais difíceis, ciente de que ninguém melhor do que ele poderia fazê-lo. Ele ia fundo em tudo que fazia e se entregava com disponibilidade total na luta junto com seus companheiros.6

Juntos, Gabriel e companheiros, começaram a reorganizar o PMDB-Partido do Movimento Democrático Brasileiro, que abrigava, à época, diversos grupos de oposição e também representantes dos Partidos Comunistas e organizações de esquerda que participaram da luta armada contra o regime militar. Lançaram candidatos a vereador, como forma de divulgar as denúncias e levar o debate político às amplas massas. Eles se reuniam com líderes sindicais para formação de sindicatos e associações de direitos do povo. Fundaram a “Federação de Mulheres de Marabá” – com Gabriel mostrando, mais uma vez, defender os direitos das mulheres. Era de conhecimento de todos que Gabriel não aceitava a participação apenas dos camponeses homens nas reuniões. Muitas vezes ele suspendeu reuniões até que as camponesas pudessem se deslocar e participar também das reuniões. E ajudaram ainda na criação de entidades estudantis e do DCE local.

No final da década de 1970, a fazenda de “Três Barras”, na qual foi encontrada uma pepita de ouro, foi logo invadida por garimpeiros conformando assim o garimpo de “Serra pelada”. A imensa mina de ouro passou a ser explorada e, ao mesmo tempo, controlada pelo regime militar, através de Sebastião Rodrigues de Moura, o major Curió, conhecido pelas perseguições e violência aberta contra os garimpeiros. E também por sua participação direta na feroz repressão aos guerrilheiros do Araguaia. Através dele, os militares fascistas tinham controle do ouro que brotava na região e o recompensaram de diversas maneiras. Tanto é que, em reconhecimento, o vilarejo onde oficialmente se localiza “Serra Pelada” recebeu o nome de Curionópolis.

Por causa dos conflitos de interesses em torno da mina, envolvendo inclusive a empresa Vale, e da situação de exploração brutal dos garimpeiros, Gabriel e companheiros iniciaram um movimento de denúncia das irregularidades e barbaridades cometidas no garimpo de “Serra Pelada”. Gabriel chegou até a organizar a distribuição clandestina de jornais políticos dentro do garimpo visando organização um núcleo clandestino interno de luta e resistência. No sindicato, eles implantaram um sistema democrático de direção, dividido em delegacias sindicais por vários locais da região, que permitia inserir muitos trabalhadores na atividade sindical.

Mal iniciado o trabalho político/jurídico em Marabá, a contradição entre o trabalho político e a catequese novamente colocou Gabriel e a igreja em lados opostos. Com o crescimento dos conflitos pela posse da terra e a iniciativa de criar sindicatos rurais e urbanos, as contradições entre eles foram se ampliando. Mesmo porque Gabriel era um revolucionário antes de ser um advogado. Ele trabalhava sinceramente pelo povo e para a coletividade e não para si mesmo ou um pequeno círculo. Isso, ainda que, como advogado do povo ele tenha conseguido ser sagaz e competente em seu trabalho jurídico. Seu trabalho como advogado cresceu, vertiginosamente, e foi de grande significado na vida das famílias de camponeses de Marabá e de muitas outras localidades. Sua presença em Marabá durou por volta de 2 anos, quando também participou, com outros advogados democráticos, de outras causas populares por todo o estado do Pará.

Ele atuou, com sucesso, na defesa dos posseiros em outras regiões, como no conflito da Fazenda Capaz, uma área na então PA-70, hoje BR-222, na região sudeste do Pará. Os posseiros emboscaram e mataram o fazendeiro John Davis – ex-piloto da Força Aérea dos Estados Unidos, na guerra da Coreia – que se transformou em missionário e, depois, em proprietário rural no Pará, mas que era, sobretudo, um madeireiro. Com ele morreram dois dos seus filhos, também norte-americanos. Alguns posseiros foram presos, antecipadamente condenados e mantidos incomunicáveis, quando os advogados Ruy Barata e Gabriel Pimenta aceitaram o patrocínio. A juíza de São Domingos do Capim, atenta ao direito deles, relaxou a prisão dos acusados e instruiu o processo, que resultou na absolvição dos posseiros. Essa combinação de defesa articulada e judiciário raramente altivo quebrou, neste caso, a doutrina de segurança nacional para outros casos semelhantes, restabelecendo o princípio do contraditório e de uma defesa mais ampla do que aquela, até então vigente na prática. Ruy e Gabriel tiveram muitos motivos para comemorar. 7

Não era este o trabalho que a igreja esperava de seus assessores, particularmente de seus advogados. Mas, Gabriel não teve dúvidas e, novamente, manteve-se do lado do povo pobre, apesar de ter sido demitido da CPT e de ter ficado sem emprego e, durante algum tempo, sem recursos para a sua sobrevivência. Tempos depois, neste processo, Sindicatos foram criados e Gabriel foi contratado pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais, voltando assim a ter alguma forma direta de remuneração para seu sustento.

Enquanto isso, grileiros tentaram desalojar as famílias da região de “Pau Seco”, que lá moravam por mais de dez anos. Fizeram várias investidas, atiraram nos posseiros, fizeram ameaças de morte e outras agressões. Foi aí que os posseiros procuraram Gabriel, para defendê-los como advogado. A juíza Ruth Gurjão do Couto deferiu a liminar de reintegração de posse, ilegal, aos grileiros. E Gabriel formulou um Mandado de Segurança contra a decisão da juíza e obteve a liminar suspensiva à reintegração de posse, em Belém, em fins de 1981. Foi uma das primeiras decisões judiciais no Pará, a favor de posseiros. O caso ganhou os noticiários e os grileiros juraram matar Gabriel, antes mesmo do julgamento do Mandado de Segurança, no Tribunal em Belém, que ocorreria em agosto de 1982. Tudo comprovado, ante testemunhas.

As ameaças ao povo e à Gabriel aumentaram muito. Naquele momento, ele era então um militante revolucionário do MR-8-Movimento Revolucionário 8 de Outubro. Depois de travar, conscientemente, uma revolução em si mesmo, Gabriel trabalhava pelo desenvolvimento da revolução em nosso país, enfrentando a luta de classe, em todas as suas faces, acreditando no futuro luminoso para o Brasil. Ele não fugiu da luta, nem de seu compromisso de servir ao povo. Ele “não temia ser ferido, nem perder prestígio, nem revelar seus pensamentos, nem esquadrinhar seu coração, nem que se afrontasse sua ‘dignidade’ pessoal, nem temia transformar a velha ordem existente”, como foi dito antes sobre os verdadeiros revolucionários.8 Gabriel se uniu, resolutamente, às massas na luta por seus direitos e contra o latifúndio. Por isso tudo ele passou a ser o principal alvo do latifúndio e do regime militar fascista.

No dia 18 de julho de 1982, no final da convenção municipal do PMDB de Marabá, ao sair à rua, Gabriel Pimenta foi covardemente assassinado com três tiros de revólver, pelas costas, disparados a curta distância pelo pistoleiro José Crescêncio de Oliveira, contratado pelo chefe de pistolagem José Pereira Nóbrega, o Marinheiro, sócio de Manoel Cardoso Neto, o Nelito. Gabriel Pimenta tombou sem vida aos 27 anos de idade.

Antecedentes do bárbaro crime

Antes de 18 de julho de 1982 – todas as informações estão nos autos ou na imprensa local e nacional – os grileiros Nelito e Marinheiro já haviam dado mostras de sua conduta violenta e sem escrúpulos. Em maio de 1980, eles adquiriram, junto a Maria Moussalem Quadros, o domínio útil de dois imóveis rurais pertencentes ao Estado do Pará. Naquele ano, o Getat-Grupo Executivo de Terras do Araguaia-Tocantins, órgão federal responsável pela execução da política fundiária na região, destacou a área do Castanhal Fortaleza II, que  considerada devoluta, discriminada, arrecadada e incorporada ao patrimônio da União, para uso do próprio Getat. Exatamente ali, naquela área encontravam-se cerca de 160 famílias de posseiros que, ao longo dos anos 70 haviam se estabelecido no local. Grande parte daqueles posseiros tinha recebido, no biênio 1979-1980, licenças de ocupação (LO) e títulos definitivos de propriedade, todos regularmente expedidos pelo Getat. Mas, os latifundiários grileiros Nelito e Marinheiro extraíam madeira na região e exatamente a área onde estavam os posseiros era a mais rica em quantidade, qualidade e variedade de madeiras.

A partir de julho de 1980, iniciou-se por parte deles, uma campanha crescente de terror e violência contra os posseiros assentados pelo Getat, tudo com o objetivo de desalojá-los. Mandavam seus capangas, à luz do dia, para ameaçar as famílias, e tratores para derrubar cercas e roças. Os posseiros resistiam bravamente e em certa ocasião conseguiram até mesmo impedir a derrubada de suas casas. Apresentaram queixa à juíza e a situação se inverteu. Um dos posseiros tomou conhecimento de que todos foram acusados de “perturbadores da posse” por aqueles que se diziam donos por, supostamente, terem comprado a área da Sra. Moussalem. Como na área existiam as posses, algumas com mais de 15 anos, os grileiros, utilizando pistoleiros, aumentaram o clima de terror e pressão, espancando e baleando alguns posseiros, sem que nenhuma providência fosse tomada pelos governos, nem polícia ou judiciário, para impedir a ação dos grileiros.

Gabriel foi procurado pelos camponeses e obteve junto ao Getat o reconhecimento sobre a regularidade da posse dos posseiros, fazendo cair por terra as pretensões daqueles grileiros. Daí, estes propuseram ação de reintegração de posse junto à justiça comum de Marabá, intitulando os posseiros de invasores recentes e não informando que as famílias viviam em terras públicas federais. Os grileiros obtiveram a medida liminar de reintegração de posse e conseguiram desalojar trinta famílias de posseiros. Alguns dias depois ocorreu a expulsão das famílias restantes. Mesmo os posseiros que contavam com título definitivo de propriedade, expedido pelo Getat e inscrito no Registro de Imóveis de Marabá, foram expulsos de seus lotes.

A violência contra camponeses pobres sem-terra é tão patente no nosso Brasil semicolonial e semifeudal que os cerca de trinta posseiros ficaram presos por mais de cinco horas dentro de um galinheiro, dormindo depois em um curral para gado. Conduzidos para Marabá, lá ficaram presos por mais onze dias. De acordo com relatos, um lavrador foi baleado por um dos pistoleiros que acompanhavam os quinze soldados da Polícia Militar que realizaram o despejo. Este conluio entre policiais e pistoleiros se tornara comum, que em um dia faziam ameaças diretas, apontando armas de fogo para mulheres e crianças, ameaçando-os de morte. E no outro dia os grileiros e seus pistoleiros tocaram fogo e destruíram barracos dos outros e do depoente no inquérito policial.

Muitas atrocidades foram cometidas, com a total cumplicidade do Estado e suas instituições. Foi no  momento em que tudo parecia perdido para os posseiros e em que a violência, a covardia, a prepotência e a mentira mostravam-se triunfantes, é que Gabriel conseguiu, junto com Benedicto Monteiro (que foi Procurador-Geral do Estado do Pará, deputado estadual no Pará e depois deputado federal constituinte), uma retumbante vitória judicial. Em 20 de novembro de 1981, ou seja, duas semanas após a expulsão completa dos posseiros, Gabriel impetrou Mandado de Segurança no Tribunal de Justiça do Pará contra a dita medida liminar deferida pela juíza de Marabá. O relator do Mandato de Segurança, Desembargador Ary da Mota Silveira, concedeu a medida liminar, suspendendo a reintegração de posse e determinando o retorno das 160 famílias para suas áreas originais. No dia seguinte, oficiais de justiça de Marabá, acompanhados por policiais militares, reinstalaram as 160 famílias em seus respectivos lotes. As famílias chegaram de volta em caminhões, com seus utensílios e ferramentas, soltando muitos foguetes e gritos de alegria!

A audiência final do Mandato de Segurança interposto em Belém por Gabriel, que suspendera a reintegração de posse dada aos grileiros, estava para o dia 4 de agosto de 1982. Quanto mais próximo desta data, mais as ameaças contra os posseiros e, principalmente, contra Gabriel se intensificavam. E todas as ameaças eram ditas em público, mediante testemunhas que depois, inclusive, depuseram no inquérito. Várias pessoas viram os pistoleiros a serviço dos grileiros rondando a casa de Gabriel e fazendo ações de reconhecimento nos locais onde ele mais frequentava.

O pistoleiro que disparou contra Gabriel no dia 18 de julho estava em um Fusca bege, acompanhado de Marinheiro, ao volante, e de outro pistoleiro. Uma testemunha que a tudo presenciou, depôs em cartório duas vezes, apontando o criminoso e os executores. A grande repercussão local e nacional do assassinato de Gabriel Pimenta obrigou o pistoleiro Crescêncio a fugir às pressas de Marabá, abandonando sua própria família. As investigações também comprovaram que ele atuava como chefe do grupo de pistoleiros que os grileiros mantinham na região. O outro pistoleiro que o acompanhava foi assassinado em maio de 1984, antes que prestasse novos esclarecimentos solicitados pelo Ministério Público. Anos mais tarde, Crescêncio também foi assassinado em circunstâncias nebulosas, que indicavam claramente ‘queima de arquivo’, destino também seguido por Marinheiro, que foi assassinado em 01 de agosto de 1999, em condições não esclarecidas. Tudo isso amplamente divulgado na imprensa paraense.

Mesmo após o assassinato de Gabriel, os grileiros continuaram perseguindo posseiros na área e só não mataram Antônio Chico, companheiro de Gabriel e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, por terem sido impedidos pela pronta intervenção de populares, dentro de um ônibus.9

O inquérito e o processo criminal

O inquérito tudo comprovou, mas não foi capaz de aplastar o colusão entre o latifúndio, as instituições do velho Estado e os militares golpistas, no sentido de punir todos os criminosos diretamente envolvidos. A prova testemunhal, por sua vez, foi suficiente, mas a juíza, e depois seus substitutos, nunca tiveram pressa, presteza ou interesse em solucionar este caso. O mandante e um dos executores (os grileiros) foram presos em Marabá, em dois dias, e enviados para Belém. Com a transferência para a capital a juíza estava garantindo a segurança dos presos e organizando seu apoio a eles, visto que três dias depois, estando eles longe de Marabá, ela emitiu o alvará de soltura. A ‘justiça” comprometida com o latifúndio os retirou da cena do crime, protegendo-os da revolta e pressão popular, na medida em que centenas de pessoas, movidas por profunda raiva e indignação pelo assassinato de Gabriel, se concentraram logo na frente da delegacia, numa tentativa de linchamento dos dois criminosos.

O inquérito policial teve início em 24 horas, quando muitas testemunhas foram ouvidas e muitas provas foram colhidas. Foi concluído em 08/09/82, portanto 50 dias depois do crime. Mas a sentença de pronúncia foi exarada em 31/08/2000, ou seja, 18 anos depois do assassinato!

O assassinato de Gabriel foi divulgado em todo o Brasil e no exterior. Cartas de governos e de organizações de defesa dos direitos do povo começaram a chegar de diversos países, endereçadas ao então Ministro da Justiça Ibrahim Abi-Ackel, ao Governador do Pará, Alacid Nunes, e até mesmo ao Bispo de Marabá, Dom Alano Pena, que havia demitido, combatido e exposto Gabriel publicamente. Como sempre, da parte destes, foram apenas palavas vazias ou o silêncio cúmplice. Na casa dos Pimenta chegaram também muitas manifestações de repúdio ao assassinato de Gabriel. Entidades, escritórios de advogados, centrais sindicais da Suíça, Austrália, Finlândia, Irlanda, Inglaterra, Alemanha, França, EUA, Suécia. O parlamento inglês, a Anistia Internacional, e diversas universidades estrangeiras exigiam a mais rigorosa apuração do bárbaro crime.

No Brasil, partidos políticos, organizações populares, sindicatos e movimentos políticos e culturais exigiam o mesmo esforço na apuração do crime hediondo. No primeiro momento, o PMDB nacional tomou a frente da denúncia, envolveu o governo do Pará e chegou aos noticiários nacionais por muitos dias. No entanto, a preocupação de alguns poucos políticos em buscar justiça para Gabriel esbarrou diretamente nos interesses do regime militar fascista em impedir o desenvolvimento da luta revolucionária na região. E nas articulações dos principais caciques deste partido, muitos deles também latifundiários. Um dos mandantes do crime, Nelito, era irmão de um político mineiro, Newton Cardoso, à época deputado federal e depois governador e vice-governador de Minas Gerais. Nelito, o único sobrevivente entre os criminosos, esteve sempre protegido, ao longo dos anos, e envelheceu tranquilamente, livre de qualquer punição.

Durante 18 anos, foram adotados todos os meios para atrasar o processo. E, pasmem, o réu se casou com a filha do oficial do cartório onde corria o processo. O processo foi encaminhado a outra vara, onde o oficial também declinou a responsabilidade, pois era tio da noiva.

Em Juiz de Fora, a família sofria com o descaso diante do crime que lhe ceifou um filho querido, com tantas mentiras ditas ao vento e todas as canalhices do judiciário e dos políticos. Os quatro advogados de Marabá constituídos pela família pouco puderam fazer diante das ameças recebidas e acabaram por declinar do mandato. Neste ínterim, um dirigente do MR-8, do estado de Minas Gerais, viajou ao Pará, onde ficou por vários dias na tentativa de buscar apoio político para a condenação dos criminosos e asso entanto, as estruturas do velho Estado estavam todas trabalhando, organizada e seguramente, para garantir a impunidade a todos os envolvidos na morte de Gabriel, em particular ao velho latifundiário Nelito. Somente em 2002, ou seja, 20 anos depois do abominável crime, a CPT assumiu o patrocínio da causa, nesta altura, transitada em julgado.

Em 4 de agosto de 1982 tinha sido julgado o mérito do Mandato de Segurança e declarada sua procedência, confirmada a liminar, autorizando a permanência dos posseiros na terra, como pedira Gabriel na ação. A sessão de julgamento foi acompanhada pela imprensa de todo país. A decisão confirmava que os grileiros não tinham direitos fundiários. O inquérito policial, como foi destacado, já estava concluído desde 23 de julho, quando o delegado pedira a prisão de ambos, devido à quantidade e qualidade das provas obtidas.

Passaram-se seis meses até que o inquérito policial e relatório fossem encaminhados ao Ministério Público em dezembro de 1982. Durante dois anos, audiências eram marcadas e desmarcadas sem qualquer explicação. Após a decretação da prisão preventiva do grileiro, somente dois anos depois foi expedido o mandado de prisão. O interesse em atrasar seu andamento era tanto que em março de 1986, o processo foi entregue em carga ao advogado Américo Lins da Silva Leal, defensor de um dos réus, para vista de dez dias. Na época, o mencionado advogado trabalhava no Escritório Freitas Leite. Contudo, o processo só foi devolvido cerca de um ano após, em março de 1987. Mesmo assim, somente após denúncia da imprensa.

Entre março de 1986 e março de 1987, o processo foi considerado desaparecido. Somente após explosiva reportagem publicada em revista de circulação nacional o processo foi devolvido à secretaria. Na reportagem da revista consta denúncia que Nelito estava, acintosamente, em cima do mesmo palanque que o então presidente José Sarney e ao lado de seu irmão, então governador de Minas Gerais, Newton Cardoso.10 Mesmo assim, citado o endereço na reportagem, não foi adotada nenhuma diligência policial no sentido de dar cumprimento ao mandado de prisão expedido em março de 1986.

Somente em 1988 foi realizada a audiência de interrogatório do acusado, após passados quatro anos e quatro meses da primeira tentativa. Em fins de 1988 outra audiência ouviu testemunhas. A mais importante delas, Luzia Batista da Silva, testemunha ocular do crime em toda sua extensão, pois estava na calçada, ao lado do carro dos pistoleiros, não compareceu por não ter sido localizada. Na verdade, Luzia havia morrido alguns meses antes, em circunstâncias até hoje inexplicadas. Foi designada a data de 14 de março de 1989 para a inquirição das últimas testemunhas, o que não se realizou. Remarcada três vezes, somente em abril de 1991, dois anos após a primeira tentativa, foi inquirida a última testemunha, que morava na cidade e nunca se

ausentou.

Em maio de 1992, um ano após encerrada a instrução criminal, foi intimado o Ministério Público para alegações finais. Mas, somente em janeiro de 2002, quase dez anos após a abertura do prazo para apresentação de alegações finais, foi certificado o trânsito em julgado da decisão de pronúncia do grileiro ainda vivo, Nelito. Depois ficou definida para maio de 2002 a realização do julgamento do acusado pelo Tribunal do Júri. A sessão de julgamento não se realizou, devido ao seu não-comparecimento. Outro júri marcado para fevereiro de 2006, não se realizou. Mas, em abril de 2006 a Polícia Federal o prendeu na fazenda do irmão, em Minas Gerais.

Porém, aquela prisão foi jogo de cena. Marcada sessão de julgamento para 27 de abril de 2006 com réu preso, no dia 12 de abril o Ministério Público solicitou que fosse reconhecida e declarada a prescrição da pretensão punitiva em relação ao grileiro vivo, Nelito. Em 8 de maio de 2006 o Tribunal de Justiça do Pará declarou a prescrição da pretensão punitiva e extinção de sua punibilidade. Tal qual uma jogada ensaiada. Encerrava-se assim, vergonhosamente, o processo criminal, sem o julgamento de nenhum dos três acusados denunciados, depois de 23 anos e 9 meses da data do assassinato de Gabriel. Os dois pistoleiros e o grileiro que estavam no carro no dia do seu assassinato, morreram assassinados e o latifundiário grileiro, mandante do crime, Nelito, totalmente impune e livre.

O judiciário paraense ofendeu a Constituição Federal, o Código Processual e a Convenção Americana de Direitos Humanos-CADH (Pacto de San José da Costa Rica). Nele se prevê a garantia do direito à prestação jurisdicional em prazo razoável, como em outras regiões do mundo. Nenhum problema para o Estado brasileiro. Pode ser dito, sem dúvida, que o juízo da comarca de Marabá deu causa diretamente a pelo menos dez anos de atraso do feito. O Estado não acionou, convenientemente, a engrenagem do serviço público judiciário e nem proporcionou à parte a prestação jurisdicional a que estava obrigado. Nenhuma surpresa.

O Estado do Pará foi acionado em ação de indenização e a sentença de primeiro grau foi procedente, condenando o Estado a indenizar seus familiares por omissão gravosa. Mas o Tribunal de Justiça do Pará cassou a sentença e extinguiu a ação com o argumento de que não entendeu que o demorado tempo de duração do processo tenha sido causado pelo Judiciário, que é o responsável pelo seu andamento, e que isso não tem relação com a prescrição no caso. Importante ressaltar que aos familiares nunca interessou a reparação financeira, e sim apenas a justiça para Gabriel.

De um total 1.493 crimes cometidos contra camponeses, apenas 85 casos foram julgados até hoje, sendo condenados apenas 71 executores dos crimes e absolvidos 49, e condenados apenas 19 mandantes (latifundiários e seus gerentes) dos quais nenhum deles ficou preso por muito tempo.11 Este aspecto decorrente mostra a existência de uma classe latifundiária poderosa que detém peso substancial no manejo do aparelho de Estado. Não podemos esquecer que só uma classe sustentada numa base material real pode ter tal poder, ou seja, a de um verdadeiro sistema latifundiário, atrasado e cruel que segue mantido no Brasil atual.

O exemplo de Gabriel

Vários anos depois de sua morte, a história e o exemplo de luta de Gabriel Pimenta seguem impulsionando a  luta dos camponeses pobres no sul do Pará e também em todo o Brasil. O povo brasileiro não esquece o seu herói! Em Marabá, um bairro do município surgido após uma ocupação de terrenos, leva o seu nome. Em Conceição do Araguaia, camponeses organizados pela LCP-Liga de Camponeses Pobres do Pará e Tocantins, tomaram as terras dos latifúndios Capivara, Talismã e Jacutinga, que hoje integram a “Área Revolucionária Gabriel Pimenta”.

O povo do “Pau Seco” nunca esqueceu Gabriel, quem mostrou a eles, camponeses, que podem ser uma força poderosa quando organizados. E mais do que isso, Gabriel venceu a grande batalha travada junto com eles. Em 6 de maio de 1988, quase seis anos após o seu assassinato, por meio da Portaria no 606/88, o Ministério da Reforma e Desenvolvimento Agrário (Mirad), autorizou a aquisição, através de acordo, do Castanhal Fortaleza I, com área de 3600 hectares e do Castanhal Fortaleza II, com área de 2398,60 hectares, sendo ambos os imóveis destinados para assentamento dos trabalhadores rurais. A parte do Castanhal Fortaleza II, onde residiam as 160 famílias de posseiros, foi incorporada aos dois imóveis adquiridos, sendo criado um único projeto de assentamento. Estava, desta forma, encerrado o conflito fundiário que havia se iniciado no distante ano de 1980 com a permanência dos posseiros, agora donos da terra.

Gabriel Pimenta é Presidente de Honra e a referência maior, como advogado democrático no Brasil, da ABRAPO-Associação Brasileira de Advogados do Povo, que o tem como norte, moral e profissional, a defesa intransigente dos direitos legítimos do povo. Assim como é lembrado e muito respeitado, a nível internacional, através do trabalho da IAPL-Associação Internacional de Advogados do Povo. Diversos centros acadêmicos universitários de Faculdades de Direito têm seu nome, bem como núcleos de prática jurídica e de advocacia popular.

Homenageado pelo “Grupo Tortura Nunca Mais”, no Rio de Janeiro, recebeu a 24ª “Medalha de Resistência Chico Mendes”, em 201212. Recebeu a “Medalha Juscelino Kubitschek”, da Universidade Federal de Juiz de Fora, em 2018 em reconhecimento à trajetória de êxito, na forma de serviços prestados à sociedade brasileira13. O município de Juiz de Fora também dele se lembrou na publicação do Relatório da “Comissão Municipal da Verdade, Memórias da Repressão” em 2016.14 Foi incluído entre os homenageados pelo Projeto “Direito à Memória e à Verdade”, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, em livro publicado em 2013,15 entre outras homenagens e lembranças.

No entanto, a mais importante homenagem a Gabriel foi prestada pelo povo pobre de Marabá e região, que soube reconhecer o seu valor e o seu heroísmo, ao pedir à família que o seu corpo fosse enterrado em Marabá, para ficar, para sempre, junto deles. Pedido que os pais e irmãos souberam respeitar, a despeito da imensa dor da perda que sentiam naquele momento. O povo de Marabá pediu que Gabriel não os abandonasse e ficasse entre eles, naquela mesma terra onde agora ele segue acompanhado de seu irmão e companheiro de lutas, José Pimenta, falecido em 2018, em decorrência de um câncer, cujas cinzes foram lá também depositadas, no dia 17 de dezembro de 2018.16 Assim foi feito; Gabriel Pimenta ficou em Marabá e segue vencendo a morte e cumprindo sua missão de impulsionar a luta do povo contra toda a exploração e opressão, em nosso país. Gabriel e José Pimenta, seguem presentes na luta!

Gabriel Pimenta manteve sua integridade revolucionária até o fim de seus dias e conservou sempre seu vigor revolucionário. É um herói do povo brasileiro, exemplo vivo de consciência comunista, vida simples e luta dura, generosidade e confiança nas massas. Com isso e com seu trabalho abnegado e incansável ele semeou sementes naquela região fértil, que vêm florescendo e criando as condições favoráveis para a luta maior contra todo o latifúndio, que já vai se conformando, tanto no norte como também em outras diferentes regiões do país.

Em seu funeral, ao qual estiveram presentes o pai, Seu Geraldo e os irmãos José Pimenta e Sérgio, representando a família, o povo de Marabá levantou uma muito significativa faixa: “Gabriel, ao te matarem te multiplicaram e agora seremos milhões!” O seu exemplo, as suas sementes que germinam e a sua trajetória certamente estão se multiplicando e encorajando os novos combatentes, que em breve serão milhões em todo o país, queiram ou não os inimigos do povo!#


1 Advogado e professor universitário. Irmão de Gabriel. E-mail: rsalespimenta@gmail.com. ABRAPO/Associação Brasileira de Advogados do Povo Gabriel Pimenta. E-mail: advogadosdopovo.abrapo@gmail.com

2 “Regime agigantou as empreiteiras e foi rico em escândalos financeiros”. http://www1.folha.uol.com.br  “Corrupção e espionagem: o que os arquivos estrangeiros guardam sobre a ditadura”, Jornal El Pais Brasil, 07 de junho de 2018

3 Dados aproximados segundo estudos e estatísticas recentes do INCRA-Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

4 De acordo com dados computados pela CPT-Comissão Pastoral da Terra                                         

5 Documento “Camponeses Mortos e Desaparecidos: Excluídos da Justiça de Transição”. http//www.forumverdade.ufpr.br/wp-content/upoads/A_%EXCLUSAO-Versao_18_setembro.pdf

6 BRAGLIA, Adelina. Correspondência. 30.ago.1995.

7 PINTO, Lúcio Flávio. Violência no Pará: ontem como hoje. Abr. 2006. Disponível em:

https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=488. Acesso em 30.07.2020.

8 “Os três artigos permanentes: Máximas para os revolucionários”. Editorial do Diário do Exército Popular de Libertação, China, 3 de dezembro de 1966.

9 BARATA, Ronaldo. Inventário da Violência. Crime e Impunidade no Campo Paraense (1980-1989). Belém: Editora Cejup, 1995.

10 Revista Isto É, edição de 12.nov.1986.

11 Dados da CPT-Comissão Pastoral da Terra

12 Grupo Tortura nunca mais – RJ. 24a Medalha de Resistência 2012. Disponível em: www.torturanuncamais-rj.org.br.

13 Universidade Federal de Juiz de Fora. Medalha Juscelino Kubitschek 2018. Disponível em:

https://www2.ufjf.br/noticias/2018/12/12/servidores-sao-homenageados-com-medalha-jk/. Acesso em:

14 Memórias da Repressão. 2a ed., Juiz de Fora: Editora MAMM, 2016.

15 Camponeses mortos e desaparecidos: Excluídos da justiça de transição. Secretaria de Direitos Humanos da

Presidência da República. Brasília, 2013.

16 “Cerimônia em homenagem ao companheiro José Pimenta em Marabá”, Rio de Janeiro Brasil: Jornal A Nova Democracia, 05 de janeiro de 2019. https://anovademocracia.com.br;

Obs: fotografias particulares, de autoria desconhecida.