Henrique Júdice
31 de Outubro de 2019
Tramitam na Câmara ao menos cinco projetos de lei (PLs) que dão forma legal ao Estado de contra-insurgência preventiva. No fim de outubro, o deputado Glauber Braga (PSoL-RJ) e o jornalista Romulus Maya denunciaram, no site Duplo Expresso, alguns deles.
O PL 2418, do deputado José Medeiros (PSL-RN, policial rodoviário federal) obriga provedores de aplicações de internet a “monitorar ativamente publicações que impliquem atos preparatórios” de “terrorismo” e prevê a infiltração de policiais e agentes de inteligência nessas redes, a critério da justiça militar (pouco mudaria se fosse a civil). Seu relator na Comissão de Segurança Pública é o delegado federal Pablo Oliva (PSL-AM).
Desde 2016, e graças à Lei 13.260, promovida por Dilma Roussef e pelo PT, “terrorismo” pode abranger coisas como o porte ou guarda de explosivos (ou de desinfetante, como no caso Rafael Braga Vieira), a ocupação de escolas ou repartições públicas, piquetes em estações de transporte ou o “auxílio indireto” a qualquer dessas coisas. Bolsonaro já chamou de “atos terroristas” os protestos populares do Chile, mostrando o objetivo do que está sendo gestado na Câmara.
O PL 1595, sobre “ações contraterroristas”, é – segundo seu autor, Vítor Hugo de Almeida (PSL-GO, major do Exército e líder do governo na Câmara) – parte do “alinhamento de entendimentos com Israel e com Estados Unidos”. Já foi aprovado na Comissão de Segurança Pública da Câmara, tendo como relator Ubiratan Sanderson (PSL-RS, policial federal), e tem parecer favorável na de Relações Exteriores e Defesa Nacional.
O PL 1595 autoriza a atuação extrajudicial “combatente-assecuratória” das polícias, Abin e Forças Armadas e seu uso para reprimir qualquer questionamento a governos e autoridades, ou mesmo na defesa de patrimônio privado. A mescla entre defesa nacional e segurança pública, polícias e forças armadas (que não deveriam se misturar nem na loja maçônica) é inspirada no antigo CODI. O PL 1595 convalida, ainda, os protocolo de ação conjunta entre FFAA, polícias e Abin anteriores à sua aprovação (Força-Tarefa de Inteligência, criada sob Temer, e centros de comando e controle do governo Dilma).
Militares, policiais ou agentes de inteligência ficam autorizados a usar identidade falsa, fazer escutas e filmagens em locais públicos ou privados, se infiltrar em movimentos e quebrar o sigilo fiscal, bancário e comercial de qualquer cidadão. Basta que o investigado “aparente ter a intenção” de “afetar a definição de políticas públicas” mediante algum instrumento reivindicativo interpretado como “coerção” (por exemplo piquetes, ocupações e bloqueios), não se exigindo sequer que a ação se enquadre na elástica definição de terrorismo da lei de 2016.
O agente estatal que matar alguém nessas ações teria em seu favor uma presunção legal de ter agido dentro da lei. A garantia de impunidade contra a população civil tem por contraface a sujeição interna corporis: o projeto prevê punir com prisão em regime fechado a negativa a obedecer qualquer ordem superior. Hoje, a recusa a cumprir ordem ilegal é um direito assegurado em lei aos servidores civis, inclusive policiais e agentes de inteligência – que têm, ainda, autonomia para avaliar, por exemplo, se devem atirar ou não. No PL 1595, essa margem não existe e a pena pela recusa é dobrada se a ordem for de membro de outra instituição – o que impõe a servidores civis uma obediência mais rigorosa que a existente nas FFAA ou PM.
Tantos poderes e garantias não atenuam temores comuns em corporações onde não falta gente que “com um revólver na mão, é um bicho feroz/ sem ele, anda rebolando e até muda de voz”, como definiu Bezerra da Silva. Além do uso de identidade falsa, o PL 1595 inclui “agentes públicos contraterroristas e suas famílias” em programas de proteção a testemunhas e vítimas de crimes. Agentes estatais armados e intocáveis passariam a receber uma proteção originalmente destinada a pessoas sob risco iminente de ser mortas por máfias que, quase sempre, têm policiais militares entre seus membros.
Por sua vez, o PL 443, do deputado João Carlos Gurgel (PSL-RJ, sargento da PM) tipifica como terrorismo “atentar contra a vida ou a integridade física” de militares, policiais, agentes penitenciários e seus parentes até o 3º grau. Já foi aprovado, com acréscimos, na Comissão de Segurança, e está agora na de Constituição de Justiça (CCJ), tendo por relator Guilherme Derrite (Progressistas-SP, capitão da PM, membro da ROTA, e vice-líder do governo na Câmara).
Derrite, por sua vez, é autor do PL 1090, que agrava a pena de qualquer crime se a vítima for militar, policial, promotor, juiz, defensor público, agente penitenciário ou seus parentes até o 3º grau; e do PL 2882, que triplica a pena por pertencimento a organização criminosa quando ela cometer ou tentar qualquer crime contra essas pessoas ou corporações. Ambos projetos foram aprovados na Comissão de Segurança com parecer favorável do relator, Luiz Gonzaga Ribeiro (PDT-MG, subtenente da PM), e aguardam votação na CCJ, onde o relator é Gurgel.
Na justificativa do PL 2882, Derrite cita os cabos da ROTA Daniel Corrêa e Fernando Flores, “executados em represália por sua atuação profissional contra o crime”. Um coronel da mesma PM paulista, José Vicente da Silva, diz que isso é falso e que criminosos comuns não matam PMs a ROTA porque têm medo e, mesmo em enfrentamentos, preferem fugir.
José Vicente não diz quem pode mata-los sem temer pela própria vida, mas a pistola que matou o soldado Genivaldo Ferreira em 2014 saiu do arsenal da ROTA. E, em 2013, um sargento dessa organização, Luis Marcelo Pesseghini, foi assassinado em casa junto com sua esposa (a cabo Andrea Bovo Pesseghini, que denunciara colegas envolvidos em furtos de caixas eletrônicos), o filho de 13 anos de ambos, a mãe e uma tia de Andrea. Após afastar um capitão que tentou investigar a denúncia e um tenente-coronel que a ligou à chacina, a PM impôs a rocambolesca versão de que a criança matou a família, dirigiu até a escola e se suicidou.
Não há qualquer esforço da bancada da ROTA em apurar esses crimes e seu acobertamento – que, claro, não visa proteger os cabos denunciados por Andrea: a hierarquia da PM parece vigorar também nas atividades ilegais. Os projetos de Gurgel e Derrite não visam proteger policiais que tentam cumprir bem seu dever e cujas mortes nem são investigadas porque a corporação as abafa. Se destinam a blindar preventivamente os que assumam o papel de covardes algozes do povo – desde a repressão organizada até simples conflitos de vizinhança.
Os PLs 1595, 1090, 2882 e 443 foram aprovados na Comissão de Segurança Pública com os votos favoráveis de Nelson Pellegrino (PT-BA) e Perpetua Almeida (PCdoB-AC) e a ausência de Marcelo Freixo (PSoL-RJ). Até seus autores expressaram surpresa por tanta facilidade.