Allan Andreassa Zanelato Sereia*
março/2009
Não é de hoje que a luta pela terra existe. Igualmente, a repressão contra esta. Um último fato em destaque, precisamente no dia 25/02/2009, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, Sr. Gilmar Mendes, demonstrou sua posição contrária à luta pela terra. Entre outras afirmações, o Presidente disse o seguinte a respeito das ações de camponeses sem-terra ocorridas naqueles dias:
“Eu tenho impressão de que a sociedade tolerou excessivamente esse tipo de ação, por razões diversas, talvez um certo paternalismo, uma certa compreensão, mas isso não é compatível com a Constituição isso não é compatível com o Estado de Direito.”
O Sr. Gilmar Mendes tornou-se mais conhecido pelo povo brasileiro por ter sido o responsável pela concessão do habeas corpus mais rápido da história do Supremo Tribunal Federal e que ainda foi concedido em um belo final de semana! Tratava-se, na época, do caso relacionado à Operação Satiagraha engendrada pela Polícia Federal, através da qual havia sido preso o banqueiro Daniel Dantas, o felizardo pela caneta do Sr. Mendes. Destaque: foram superadas as competências do Tribunal Regional Federal e do Superior Tribunal de Justiça, revogando-se a ordem de prisão de um juiz de primeiro grau.
Diante estes fatos mencionados, questiona-se: qual a razão para haver diferença no tratamento dispensado pelo Judiciário a um banqueiro e a um camponês?
A promessa da reforma agrária na república dos bancos
Reforma agrária é promessa. Isto já há tempo se tem certeza. Promessa e mais nada que isso. Esta promessa até mesmo está inserta na Constituição Federal de 1988, aquela mesma que o Sr. Mendes se refere quando fala em Estado de Direito.
A Constituição Federal de 1988(CF/88) destinou um pedaço de todo o seu texto para a reforma agrária, como se a promessa de outrora seria cumprida finalmente. Em 1993, foi editada a lei n. 8.629 especificamente sobre o assunto que, ao invés de facilitar o processo de reforma agrária, cria obstáculos e não finda com o principal inimigo do camponês: o latifúndio.
Por assim ser, a lei da reforma agrária concretizou a promessa, ou seja, garantiu que a reforma agrária não passará de promessa.
Por outro lado, a crise capitalista nesta primeira década do século XXI, acelerada principalmente pela falência do sistema de crédito ofertado pelos bancos por todo o mundo, demonstrou que nem toda promessa precisa esperar tanto tempo e a lei nem sempre é necessária. Afinal, após a enxurrada de demissões que deixou milhares desempregados (segundo os números oficiais) em um efeito dominó que fechou bancos e fez com que outros fossem estatizados, alcançou montadoras de automóveis em cheio e agora bate à porta de indústrias de todos os setores e de todo o globo, quem foram os agraciados com a ajuda financeira bilionária dos governos? Ora, os bancos, ou melhor, os banqueiros!
E qual foi a primeira atitude do Sr. Barack Obama nos Estados Unidos da América do Norte? Mal foi empossado e já há um novo “pacote financeiro” de outros dois anteriores no Congresso para votação, nenhum deles menor de 600 bilhões de dólares, para nova ajuda financeira aos bancos daquele país.
No mundo todo, a história se repete. Fala-se em empréstimos às pressas aos bancos (e não aos banqueiros, como se fosse diferente), e esquece-se do povo. As promessas dos novos governantes ficaram para depois, “agora é preciso salvar os bancos”. Depois serão feitas as leis para controlar o mercado financeiro, mas estas não são tão necessárias ao que parece.
No Brasil não é diferente. As primeiras medidas, tais como lá, foram de repassar dinheiro aos bancos, com a “promessa” de que as instituições transfeririam parte para o setor de crédito. Alegou-se que seria fiscalizado este repasse e, caso não fosse cumprida a promessa, o dinheiro deveria ser devolvido. A respeito, noticiou-se em pouco tempo depois que este repasse por parte dos bancos não estaria ocorrendo, ou seja, não foi cumprida a promessa. Contudo, não houve notícias sobre a devolução do dinheiro.
De que forma teria sido a manifestação do Sr. Gilmar Mendes a respeito? Nenhuma.
O estado de diretio e outras promessas
É constante a promulgação de novas lei que regulamentam normas da CF/88. Ao que parece, ao contrário da teoria jurídica, as normas constitucionais continuam não auto-aplicáveis. Pelo menos algumas.
O art. 192 da Constituição determina o seguinte:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.
Por sua vez, o art. 193 afirma:
Art. 193. A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiças sociais.
Dos dois artigos mencionados, pode-se crer que a realidade brasileira está de acordo com o conteúdo destes dispositivos legais?
Agora, passa-se a transcrever o art. 3º da Carta Magna:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Quais objetivos destes elencados o Estado de Direito tem cumprido? O Sr. Gilmar Mendes poderia assinalar?
Pela leitura dos sonoros artigos que foram mencionados, vemos que não apenas estes dispositivos da CF/88, como praticamente todos, na prática, são apenas promessas.
Resistência x opressor
As promessas do Estado de Direito não fazem efeito ao povo que precisa de terra para trabalhar, pois as ‘castas’, as classes sociais criadas pelo sistema capitalista imperam como é de sua natureza. A exploração do homem pelo homem continua sendo a razão de ser do capitalismo e isto é, para o proletariado, sinônimo de opressão.
Como nos ensina Fernando Barcellos de Almeida “entre os direitos fundamentais sempre esteve presente o direito de rebelião ou o direito de resistência contra os opressores, que documentos históricos consideram também um dever”. 1
Até mesmo os liberais, primeiros fundadores do Estado de Direito, defendiam a resistência como um direito fundamental do ser humano, ainda que de maneira individual. Sustentavam que o direito de resistência se manifesta como uma defesa própria e legítima do indivíduo a partir do momento em que o Estado desrespeita as regras do pacto social. Ocorrer-se-ia, assim, o comprometimento com a legalidade estatal por afrontar diretamente os princípios éticos e os de direito, o que representa a nítida influência do pensamento lockeano.2
Na brilhante frase de Rudolf Von Ihering: “A vida do direito é uma luta: luta dos povos, do Estado, das classes, dos indivíduos”.3
Ainda segundo o sociólogo do Direito Niklas Luhmann responde que “quem não está disposto a defender seu direito com a força física tem mais é que perdê-lo, pois é exatamente essa disposição que mantém a vigência do direito”.4
Assim, o próprio direito somente se manifesta pela luta, pela resistência. Para que haja direito é necessário que haja resistência. Através dela é que se cria o Direito.
Se o Sr. Gilmar Mendes nega este fato, é sinal que não deseja ver a resistência de um povo criar o Direito e sustentar o Estado de Direito que ele defende. Com toda certeza, o Estado de Direito que o Presidente defende é outro, é o Estado do opressor, daquele que condena todo um povo a viver sob o seu jugo, sem poder lutar contra as amarras que lhe prendem desde os pés à garganta e que lhe faz promessas nunca cumpridas.
Movimento Camponês e os direitos fundamentais
Por tudo o que se foi falado anteriormente, pode-se confirmar que o movimento camponês existente no Brasil não tem feito outra coisa senão lutar por um direito que é o direito de trabalhar, também garantido constitucionalmente.
O instrumento utilizado para tanto é a resistência, pois somente assim conseguem garantir seu direito enquanto o “Estado de Direito”, que o Sr. Gilmar Mendes defende, nega a todo preço.
Não há outro meio de luta pela terra senão a resistência. A pacificidade apenas reforça o opressor que tem pela frente um cidadão fraco, sem alternativas para defender a si próprio.
Deste modo, a criminalização do movimento camponês é a comprovação de que estamos diante do opressor, e contra ele o camponês tem apenas o companheiro para resistir e enfrentá-lo, pois o opressor tem defensores fortes, como é a pessoa do Sr. Gilmar Mendes, Presidente do Superior Tribunal Federal, amigo de Daniel Dantas, banqueiro.
A terra não pode continuar sendo promessa, tem de ser verdade.
Viva o heróico movimento camponês!
Abaixo a Criminalização da Luta Pela Terra!
* Allan Andreassa Zanelato Sereia é advogado no Paraná e membro da Associação Brasileira dos Advogados do Povo – ABRAPO
1 ALMEIDA, Fernando Barcellos de. Teoria Geral dos Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Sérgio Fabris Editor, 1996, p. 101.
2 BUZANELLO, José Carlos. Direito de Resistência Constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006, p. 20.
3 IHERING, Rudolf Von. A Luta Pelo Direito. 1ª. ed. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 1.
4 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983, p. 125.