Júlio da Silveira Moreira
A extradição de Cesare Battisti, analisada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, ficará marcada entre os casos notáveis do Judiciário brasileiro — na figura de uma justiça colonial, pronta para entregar dissidentes a um Tribunal de Inquisição, por cima de uma suposta “tradição brasileira de respeito aos direitos humanos”.
Desde que Battisti foi preso no Rio de Janeiro (em março de 2007), o caso tem despertado a crítica de inúmeros juristas e intelectuais progressistas, que demonstram inquestionavelmente se tratar de uma “articulação reacionária visando esvaziar a proteção constitucional aos autores de crimes políticos” (v. AND 53, Cesare Battisti, prisioneiro de Mendes, de Henrique Júdice).
Importante lembrar, de antemão, que uma decisão do STF de entrega de Battisti ao governo italiano é de tanta responsabilidade que importará no seu automático encaminhamento para a pena de prisão perpétua, iniciada com um período de 6 meses de isolamento1.
A absurda decisão do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), negando o status de refugiado ao imigrante italiano, foi objeto de recurso de sua defesa para o Ministro da Justiça, que reconheceu, em janeiro de 2009, sua condição de perseguido político. Três dias depois, o STF negou o pedido de liberdade, resultando numa demora de quase dois anos e meio em que Battisti é um “prisioneiro político do STF”, conforme afirmou o ministro Joaquim Barbosa.
Surgiu assim um conflito entre dois institutos do Direito Internacional: o refúgio (no caso, já reconhecido pela instituição competente, o Poder Executivo) e a extradição (solicitada pelo governo italiano e que está sendo julgada pelo STF). Ocorre que o STF não poderia julgar a extradição, diante da clara redação do art. 33 da Lei n. 9.474/77 (Estatuto dos Refugiados):
“Art. 33. O reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição baseado nos fatos que fundamentaram a concessão de refúgio”.
Lei? Ora, a lei…
Por que então, nesse caso, a lei não é aplicada? A resposta está muito além das ilusões jurídicas, no fato de que o Direito não existe de forma separada de um poder de classe.
A sessão de julgamento foi aberta em 09 de setembro passado, num ambiente em que “Membros do próprio tribunal, o Procurador Geral, o Alto Comissariado das Nações Unidas e até o representante do Ministério da Justiça no CONARE reconhecem que a cúpula do STF e o governo neofascista italiano se uniram para iniciar um julgamento sem sentido, gerando um fato de ingerência do Judiciário no Executivo absolutamente inválido”.2
Logo no início da transmissão do julgamento em rede nacional de TV, o presidente do tribunal, Gilmar Mendes, foi interrompido por várias vozes anônimas no auditório, que clamavam “Liberdade para Cesare Battisti”, ao que Mendes ordenou aos seguranças da casa: “Retire imediatamente!” e ouviu de volta os gritos de “Abaixo a repressão”, demonstrando o inegável caráter político do julgamento.
As defesas orais foram iniciadas pelo advogado da “República Italiana”, que repetiu os frágeis argumentos da metrópole, de que Battisti não foi condenado por crimes políticos e proferindo disparates como que a concessão de refúgio não é ato político.
A Procuradora do Ministério da Justiça, por sua vez, demonstrou juridicamente o absurdo da atitude do Estado italiano em pretender a anulação do ato do Ministro da Justiça mediante uma ação de Mandado de Segurança. É como se um país estrangeiro tivesse o direito “líquido e certo” de impedir a decisão do Chefe de Estado do Brasil, uma vez que o Ministro da Justiça nada mais é do que o representante do presidente da república num assunto específico.
Essa questão também foi apontada pelo Procurador Geral da República, Roberto Gurgel, mostrando que o governo da Itália — e logo o STF — tentam anular uma decisão administrativa e política do Estado brasileiro, “invertendo a um só tempo o princípio da soberania nacional e o sistema de proteção dos direitos humanos consagrados no país”. Destacou ainda que “não se deve nunca deixar de aplicar em casos como esse o princípio da interpretação mais benéfica aos direitos humanos, o que a toda evidência beneficia o refugiado e não a Itália”.3
Afinal, qual é o crime?
O advogado de Cesare Battisti, Luís Roberto Barroso, em sua defesa, fez um contundente resumo do caso, mostrando que a condenação de homicídio à revelia se deu num contexto de perseguição política aos militantes de esquerda, fundada apenas na delação de um dirigente da organização Proletários Armados para o Comunismo, Pietro Mutti, quando, preso em 1982, “despejou, por além do crível, a responsabilidade de todas as ações mortais do grupúsculo. Isso porque, como declarou o próprio Mutti, Battisti se encontrava no exterior. No Brasil, na ditadura, era habitual entregar sob tortura companheiros mortos e no exterior, para não comprometer militantes presos ou no país.”.4
Barroso mostrou que Battisti passou 14 anos vivendo como refugiado na França, ocasião em que foi negada sua extradição, sendo esta concedida apenas 12 anos depois, diante da crescente fascistização dos governos europeus (v. AND 47 — Fascistas deixam as máscaras no armário). Desde então, Battisti vivia pacificamente no Brasil.
Ficou evidenciada a postura com que as autoridades do Brasil, ao melhor estilo de colônia e numa imoral traição ao povo brasileiro, se curvam aos governos imperialistas, dando risadas ao ouvir coisas do tipo:
“Não me parece que o Brasil seja conhecido por seus juristas, mas sim por suas dançarinas. Portanto, antes de pretender nos dar lições de Direito, o ministro da Justiça faria bem se pensasse nisso não uma, mas mil vezes.”
Essa fala, do deputado italiano de extrema-direita, Ettore Pirovano, “revela muito sobre o universo mental da coligação governista da qual ele faz parte, em companhia dos neofascistas declarados que, sob a batuta de Silvio Berlusconi, sentem novamente o gosto do poder, mais de 60 anos depois que Mussolini teve o seu merecido fim”.5
Após as defesas orais, seguiu-se a leitura do relatório e voto do ministro relator do caso, Cezar Peluso, um arrazoado de 138 páginas no qual o ministro, na prática, exclui a aplicação do Estatuto dos Refugiados, fundamentado em algo tão vazio quanto a afirmação de que “[a lei] só teria validade se o Ministro da Justiça Tarso Genro houvesse tomado uma decisão válida”.
Submissão em qualquer esfera
A disputa de grupos de poder acima de qualquer norma jurídica fica tão evidente, que a lógica é a seguinte: o STF, enquanto entende que o Executivo não pode excluir do Judiciário a apreciação de um caso, exclui ele próprio o Executivo dessa apreciação.
O ministro da Justiça, por sua vez, conforma-se aos ditames coloniais, sob o pretexto de evitar conflitos entre os poderes: qualquer que fosse a decisão do STF, seria respeitada6. Um dia antes do julgamento, Genro estava lançando a campanha “Fim da Linha”, em parceria com a Interpol, visando aumentar o número de prisões de foragidos estrangeiros no Brasil…7
No conteúdo do relatório, uma defesa intransigente do Governo da Itália8, Peluso procura, de um lado, mostrar o quanto democráticos eram o governo da época e os tribunais que condenaram Cesare Battisti, e, de outro, advogar “uma das mais rançosas teses da diplomacia internacional: a necessidade de considerar ‘intocável’ o processo judicial aplicado pelo país perseguidor, passando por cima das fraudes cometidas pela Itália no julgamento de Battisti em ausência”9.
Esse voto contraria a jurisprudência do próprio STF, que estabeleceu, em 1989, importante diferenciação entre terrorismo e luta revolucionária (Extradição n. 493). Agora, Peluso chama as ações de resistência de “banditismo social”.
Posteriormente, em debate com o ministro Eros Grau, Peluso o acusa ironicamente de ser advogado de Tarso Genro, disfarçando a sua tão sublime defesa em favor dos disparates italianos. Tamanho sarcasmo levou Eros Grau a proferir seu voto e abandonar o plenário.
Nos meios das organizações de direitos humanos e principalmente da diplomacia brasileira, é comum dizer que o Brasil possui uma tradição na defesa desses direitos. O que o julgamento de Cesare Battisti mostra é que essa suposta tradição é invocada apenas para assegurar uma imagem do governo no exterior e encobrir as violações aos direitos humanos praticadas pelo Estado brasileiro. O povo brasileiro, este sim, possui uma história de lutas por seus direitos fundamentais.
Entre os ministros do STF, há vários professores de grandes universidades e autores de livros na área de direitos humanos. Boa parte destes votou a favor da entrega de Battisti para o governo italiano. Que direitos humanos são esses?
Resta destacar os ministros que até agora votaram contrários à extradição: Carmem Lúcia, Joaquim Barbosa e Eros Grau. A favor, Cezar Peluso, Ricardo Lewandowski, Ellen Gracie e Ayres Brito. Restam votar Marco Aurélio e Gilmar Mendes — não é preciso questionar qual será o voto de Mendes. O julgamento foi adiado e deve ser retomado em novembro, após a posse de José Antonio Toffoli como ministro, e há quem diga que a tendência é ele votar a favor da permanência do italiano no Brasil, o que provocaria um empate favorável ao refúgio e Battisti deveria ser libertado. Enquanto isso o italiano continua preso.
Casos emblemáticos
Há mais de 60 anos, o Estado brasileiro entregava a comunista revolucionária Olga Benário Prestes para a Alemanha de Hitler, onde veio a ser executada na câmara de gás.
Na década de 20, outros dois militantes revolucionários italianos estavam sendo julgados por um tribunal racista e anti-imigrante do estado de Massachusets, no USA. As histórias de discriminação, fraudes, manipulações e arbítrio do poder no processo de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti — levando-os à condenação à morte na cadeira elétrica — lançaram para o lixo da história o discurso de “terra das liberdades” do USA.
O caso Cesare Battisti é emblemático ao demonstrar o servilismo das autoridades brasileiras a qualquer tipo de imperialismo que possa se apresentar. É uma demonstração inequívoca de que o Direito não existe separado do poder, já que as classes dominantes ignoram as regras, que elas mesmo criaram, em função de seus interesses. Sendo assim, a luta pela transformação também precisa ser sobre o poder de classe. Cabendo a todos os amantes da democracia defender a liberdade de Cesar Battisti.
Notas
1 – Embora a Itália tenha admitido, caso seja concedida a extradição, a troca da pena perpétua por 30 anos, o que não altera muita coisa diante da dúvida sobre a manutenção desse compromisso quando o extraditado já se encontrar em poder das autoridades italianas.
2 – http://cesarelivre.org/node/139
3 – http://cesarelivre.org/node/135
4 – V. “Diabolização de Battisti por Berlusconi é parte do seu projeto de poder ‘fascistizante’”. Entrevista com Mário Maestri e Florence Carboni, http://cesarelivre.org/node/68
5 – V. “A mídia contra Battisti”, do jornalista e professor Igor Fuser (http://cesarelivre.org/node/60)
6 – Carlos Lungarzo: Decisão Judicial ou Indulto?
7 – Jornal do Commercio, 09/09/2009
8 – “O relator do caso Battisti, Cézar Peluso, mostrou, durante os últimos meses, um comportamento tão servil com as autoridades italianas, que não admite comparação com eventos anteriores, seja no país, seja no exterior.” Carlos Lungarzo: Decisão Judicial ou Indulto? http://apesardevc19641985.blogspot.com
9 – Idem.